domingo, 12 de dezembro de 2010

Lady Gaga: A tia louca da família


Devem recordar-se de uma antiga lenga-lenga a que as crianças ainda acham graça e que reza assim: “Há fogo, há fogo, nas cuecas do Diogo”. A psicanálise muito possivelmente avançaria que o fogo nas cuecas do Diogo que tanto encanta as crianças que o cantam será uma forma de aproximação a uma sexualidade ainda infantil. Mas quem visse o concerto de ontem de Lady Gaga no Pavilhão Atlântico, poderia facilmente tomar a lenga-lenga no seu sentido mais literal – não houve fogo nas cuecas do Diogo, mas houve fagulhas a sair dos bicos do soutien da cantora americana. O que, não por acaso, provocou delírio entre incontáveis raparigas de não mais que oito ou nove ou dez anos de idade.

Que coisa é esta que faz o Pavilhão Atlântico encher-se de meninas pré-adolescentes e respectivas mães mas que está muito longe se ser o Noddy? Que açambarca todas as faixas de mercado excepto a que vai dos vinte aos trinta e cinco, a menos representada (pelo menos no balcão, que foi a zona a que tivemos acesso) no primeiro concerto de Gaga em Portugal? Que põe essas mães a cantarem “I’m a freak bitch, baby” (“Bad romance”) acompanhadas em cada sílaba pelas filhas, aparentemente sem repararem no teor das letras (ou reparando e não se importando)?

Foi escrito, inclusive neste jornal (por duas vezes nos últimos dias), que um concerto de Lady Gaga não é um concerto ou não é “apenas” um concerto – a música é “apenas” uma parte do que na realidade se verifica ser um “espectáculo”. Essa dimensão de espectáculo, sabemo-lo, perdoa tudo – os palavrões, a constante exposição da sexualidade, o “grotesco” que se revela na procura incessante do “freak” que marca a imagem de Lady Gaga. Tudo elementos que em princípio deixariam a classe média de cabelos em pé. É difícil de imaginar que um pai gostasse de ver a filha pequenina a imitar a coreografia de um drag-queen vestida de cinto de ligas e couro com um chicote na mão. Mas houve centenas de pais que não só aprovaram, como igualmente imitaram. Que coisa é esta, portanto?

Convém explicitar que ao contrário do que a intelligentsia espalhou o “espectáculo” não é propriamente uma coisa nunca vista, nos seus elementos cénicos, de luz ou coreografia. É uma espécie de variação da "obra" cénica de Madonna, com menos polémica religiosa. O concerto abre com uma tela que cobre o palco e funciona como sombra chinesa (lá atrás está Gaga, com um foco nas costas). O primeiro cenário é relativamente simples: há uma escadaria no topo da qual se encontra a artista, há sinais luminosos que imitam os diners americanos e que dão ao palco o ar de beco mal iluminado, há um carro sob cuja capota se esconde um sintetizador. Mais tarde haverá um árvore gótica estilizada, uma espécie de redoma gigante no meio do público de onde se levantará uma plataforma, com a cantora no meio; e uma tenda de campanha de onde Gaga sai com um vestido transparente, os mamilos tapados por pensos em forma de cruz com ar forçadamente surpreendido por ter sido apanhada naqueles trejeitos.

A nudez é uma constante nas imagens projectadas na tela que vai aparecendo ou desaparecendo ao longo do concerto. Vê-se Gaga a tapar as maminhas, Gaga nua de lado, Gaga nua com as sombras a tapar as maminhas e/ou mais que isso, etc. Talvez o lado assumidamente teatral que Gaga assume (por exemplo) no momento acima mencionado, quando a tenda se abre e ela é “apanhada” de seios desnudos, talvez a expressão tão forçada, tão teatral invista essa sexualidade de um tom cómico ou burlesco, sublimando a carga erótica (?) ou provocatória (?) da cantora. Tornando-a, por assim dizer, mais digerível para a classe média – afinal, ela própria diz no concerto que a coisa que mais detesta é a verdade.

Esse sim é o elemento fundamental do concerto: o constante diálogo de Gaga com o público. Ela é, à vez, pregadora ao jeito da IURD, girl-next-door, patinho feio que deveio cisne, freak que nunca será igual aos outros, ou, como chegou a dizer, “uma prenda” no “castelo de Gaga” onde “cada um de vós [público] é rei”. Tudo no discurso de Gaga é acerca desse público – por exemplo, quando diz “As pessoas pensam que eu sou corajosa, mas eu não sou corajosa sem vocês”. E tudo no seu discurso é acerca de si própria – é ver a citação do castelo e dos reis. Ela tem um twist engraçado na habitual rábula “ninguém acreditou em mim mas eu cheguei até aqui e tornei-me rainha” que os americanos adoram fazer e que consiste em afirmar que, tal como cada um de “vós”, ela era um patinho feio e ninguém acreditava nela mas depois, bem depois, continua um patinho feio.

Talvez seja este o segredo da personagem: tal como milhares de “actores” do espectáculo antes dela, Gaga apela ao sentido de individualidade de cada um, ao seu inner-core, por assim dizer, à fragilidade de onde nasce a força (para usar uma imagem batida). Mas não o faz prometendo que a larva se transformará em borboleta, fá-lo dizendo “larva é que é bom”, mensagem de tom dúbio, mas eficaz.Claro que estes ditames não são ditos para serem interpretados, antes surgem para diminuir o ritmo do concerto (ou para permitir uma troca de cenário) ou preparar a canção seguinte – ela é, admita-se, tremendamente eficaz nessas pregações, descendo e subindo o clamor do discurso à sua bela vontade.

Mas estas epifanias (anti-)messiânicas são pontos de exclamação no que é, grosso modo, um espectáculo de revista high-tech, ou a versão industrial de uma discoteca pimba. Não há paragens, as batidas vagamente tecno são constantes, não há praticamente um momento sem uma coreografia espalhafatosa ou um truque qualquer, como um piano (ou qualquer outra coisa) a arder.

É um ataque aos sentidos, certamente, mas convém esclarecer que a ideia de que toda aquela gente se encanta apenas pelo lado “espectacular” de Gaga só pode ser falsa, ou só pode ser discurso de classe média alta intelectual que quer desculpar o facto de gostar da senhora: toda aquela gente conhece cada uma daquelas palavras, canta com felicidade cada melodia, etc. Por alguma razão – possivelmente graças à máquina publicitária que tem por trás – aquela música que paira algures entre o r’n’b óbvio, o lamechas, e o electro mais simplório, feita de melodias com três notas e batida bem marcada, aquela música funciona. Se é boa? Pessoalmente diria que não, mas funciona e não é só pelos soutiens a arder.

O melhor resumo possível do que se passou ontem esteve na boca de duas senhoras dos seus quarentas acompanhadas das filhas ou sobrinhas: uma disse “Esta tipa é louca”, a outra retorquiu “É a tia louca da família”. É um pouco isso: Gaga é o freak para consumo da classe média entediada, é a tia louca da família que as crianças adoram e a que toda a gente acha graça, menos a avó. E é inofensiva, como qualquer criança o dirá.

publico.pt

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